quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

O Talento vai muito além da banalização de “Talento” (caso Manu Ginobili)


A banalização da palavra talento desvirtuou o conceito. Sabem quando de tanto utilizarmos determinada palavra erradamente acabamos por lhe perder/mudar o significado, foi isso que aconteceu ao “talento”. Ou isso ou então andamos a dar valor a coisas que por si só não são suficientes para serem tão valorizadas como são. Vou tentar dar uma ideia daquilo que para mim é o, chamemos-lhe, TALENTO TOTAL.

Quando se fala em talento referimo-nos sempre a algo que pode muito bem ser efémero, por se passar uma ideia de facilidade para o alcançar o estado a que se chegou e que dá uma autoridade eterna. Talento na boca do Mundo é sempre apenas parte daquilo que é necessário para se ser talentoso, é sempre o superficial e resume-se ao visível - o produto “final”. Isto para mim é o maior erro e é o que mais nos afasta da formação do/para o TALENTO TOTAL. Geralmente num jogador de futebol a análise do talento é circunscrita ao que faz com bola, porque só queremos fazer o que gostamos e geralmente quem só faz o que gosta perde qualquer hipótese de manter o talento, porque fazer só o que se gosta impede o talento de aparecer e impede até que apareça aquilo que gostamos de fazer. O segredo, como diz Toni Nadal, não é fazer só o que gostamos, mas sim gostar do que fazemos. E por isso não podemos desligar aquilo que fazemos, da mentalidade que permite manter e alcançar a cada dia "níveis maiores de talento". Sem tudo isto, talento seria algo passageiro, quando na verdade deveria ser continuidade e consistência, para que a resolução de problemas no jogo (também a nível emocional) fosse uma constante e deveria conseguir sobressair mesmo na adversidade sem cair em desculpas.

No fundo, defendo que o talento é muito mais do que aquilo que normalmente se diz. A mentalidade que demonstramos no jogo e no treino é talento e é duma importância enorme. Quem é que já ouviu o seguinte: "Eu se quisesse era melhor do que o Messi ou do que o Ronaldo. Tinha pés mas não tinha cabeça."? O que não tinha era capacidade para aproveitar o tal talento que se banalizou, e que não é mais do que uma mera habilidade sem potencial para ser mantida ou melhorada. Não tinha o talento necessário para se deixar treinar e desenvolver a cada dia, não tinha este talento de sacrificar tantas outras coisas em prol de melhorar a cada treino. Portanto é óbvio que o talento também está na mentalidade, uma grande ajuda para se melhorar por é ela que vai permitir ser talentoso no jogo, na época, na carreira, na vida.

O grande exemplo de Manu Ginobili - sendo ou não adepto de basquete, estes exemplos fascinam-me sempre, têm que ser estes os modelos a seguir, para mim serão sempre. Por tudo, no fundo pela “TOTALIDADE do seu TALENTO”.

Imaginem que aquele que é reconhecido como o que melhor joga, aquele que é o mais respeitado por todo o grupo, o líder natural, é também o que melhor treina e aquele que mais se deixa guiar pelo treinador no sentido de perceber o que se pretende dele e da equipa. É que não se trata de valorizar o treinador, esta mentalidade de deixar-se guiar está muito além dos benefícios para o treinador, é um benefício colectivo que o "líder natural" se deixe treinar sempre nos limites.

Isto é para mim o TALENTO TOTAL, tudo aquilo que ajuda a resolver da melhor forma possível cada situação.


a) extracto do programa: “La pasión según Sacheri” con Pepe Sanchez - 29 de julho de 2018

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

Mourinho e Guardiola: "Copiar-Colar" vs Produzir o Próprio Conhecimento


Podemos dizer que é "produzir o nosso conhecimento" ou "sentir o que fazemos como algo que vem de dentro de nós", a verdade é que o processo de criar algo, como “uma forma de jogar para alcançar objectivos”, é algo verdadeiramente pessoal, (neste caso colectivo) porque o treinador não o faz sozinho (há muita gente que colabora para que a ideia se incorpore e manifeste com sucesso).

Com isto, não me parece que os treinadores, Mourinho e Guardiola, queiram dizer que não nos deixemos influenciar por aquilo que existe, vivenciamos, vimos, analisamos e ao qual nos ligamos, de certa forma, sentimentalmente.

Todos temos as nossas influências, e sabendo disso as nossas ideias não deixam de ser nossas. O essencial é que essas ideias e toda a informação que nos vai influenciando se ligue e seja digerida dentro de nós. Desta forma, quando operacionalizamos e começamos a nossa criação, a ideia já vem com as nossas emoções e sentimentos, já vem com um sentido que é nosso, que é pessoal, porque foi entendido por nós, e nós lhe demos coerência (a nossa). Aquilo que antes era informação e conhecimento avulso passou ser algo pessoal que tentaremos transmitir de acordo com aquilo que são as nossas prioridades diárias e mais a longo prazo, para a criação da forma de jogar que sentimos.

Isto de "produzir o nosso próprio conhecimento" tanto serve para o "Idealizar do jogo" que pretendemos, como para a forma de levar a cabo o gerar do modelo no dia a dia com os jogadores que compõem a equipa. Temos um referencial (prévio e ao mesmo tempo orientador do processo) e temos o caminho para o alcançar. Esse caminho é construído no dia-a-dia, sendo que o ideal poderá servir para nos guiarmos e não nos perdermos, é como uma bússola que ajuda a orientar as prioridades, mas é essencialmente no dia-a-dia que vamos percebendo onde ajustar, para seguirmos o melhor caminho, na direcção mais coerente com os jogadores, com a nossa ideia e com aquilo que fomos transmitindo até aí.

O "copiar-colar" não chega, pois não nos resolve o problema imprevisto. No “aqui e agora”, com os jogadores, há que ser genuíno e manter uma linha que não gere dúvida e que no fundo seja coerente com o caminho percorrido até ao “aqui e agora”. Sem sentir e perceber é difícil transmitir e convencer.

Nota: Treinadores top têm sempre semelhanças, ainda que gostemos mais de os colocar de "costas voltadas".


a) extractos duma entrevista de Pep Guardiola (2018) para o programa “Un Nuevo Dia” do canal Telemundo

b) extractos duma entrevista de José Mourinho (2015) ao FPF360 - https://www.youtube.com/FPFutebolOficial (Canal Oficial da Federação Portuguesa de Futebol)

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

A realidade não tem que ser inimiga da auto-estima


Mais uma vez Toni Nadal. Não me canso deste exemplo nem desta forma de pensar. Essencialmente, porque faz reflectir sobre as coisas que parecem estar instituídas, como verdades absolutas, na sociedade contemporânea.

Numa sociedade em que a palavra "não" parece estar proibida para pais e educadores, o desporto, ou algumas pessoas nele inseridas, parecem ser a excepção. A questão é: em que ponto da nossa “evolução” é que o “não” é mais nefasto para a aprendizagem do que o “sim”?

Tudo tem que ser positivo para não melindrar e fazer com que as crianças e jovens acreditem que são muito bons (ainda que isso contrarie a realidade) e que estão repletos de dons inatos e virtudes (são perfeitos). A realidade é que somos (felizmente) seres constantemente imperfeitos - o aborrecimento que seria o contrário!

Como é que se ensina alguém perfeito? Que vantagem é que tem essa noção de que somos perfeitos, aos olhos de quem nos rodeia, para o processo de aprendizagem? Não será melhor termos a noção de que "não somos bons o suficiente", para que desde esse ponto de vista seja desafiante a tentativa de melhorar?

Viverá a auto-estima da constante lembrança do quão bons somos? Parece-me que há um paralelismo entre uma má alimentação e a "auto-estima" (na forma como é normalmente tratada e percebida). A verdade é que alimentamos muito mal a nossa auto-estima, temos que entender que ela que só é verdadeiramente fortalecida na aprendizagem e na noção de que há sempre algo a melhorar - processos que vivem de experiências, que por sua vez têm consequências. Dizerem-nos que somos melhores que os outros, que merecemos jogar mais (para dar um dos muitos exemplos) coloca pressão para provarmos que realmente somos isso que nos dizem (muitas vezes só para nos “animar”). O que acontece é que mais tarde ou mais cedo a realidade nos pode mostrar que não somos capazes de cumprir com essas expectativas. Muitas vezes o que sucede é:

- os miúdos “mudam a/de realidade”, para uma que lhes permita provar que são bons como toda a gente lhes diz - isto implica empobrecer os contextos de forma a que só lhes sejam apresentados problemas fáceis de resolver, para não correr riscos de fracassarem;
- constantemente arranjam desculpas para o fracasso e assim mantêm a sua “reputação” intacta;
- passam a entender que quem os rodeia não está ali para “espicaçar” a aprendizagem e apercebem-se/sentem então que vivem num lugar onde toda a gente é responsável por tentar fazê-los felizes – que mensagem é que isto passa?

Transmitir-lhes valores e guiá-los? Claro que sim! Mas no final de contas eles terão que sentir que essa busca pela felicidade é um caminho pessoal e que terá que ser construído por eles, com fracassos e frustrações que eles terão que aprender a ultrapassar. Se os desafios/as experiências são o caminho para aprender, o fracasso é apenas a consequência que decorre do tentar, é um "mal" necessário para nos tornarmos melhores, nada mais. Assim entendido este processo torna-se muito mais aliciante, especialmente se também houver a possibilidade se falhar.

A realidade é que somos "imperfeitos", aceitemos isso com naturalidade e almejemos melhorar.

a) Intervenção de Toni Nadal no Congresso "Lo Que De Verdad Importa" organizado em conjunto pela Fundação LQDVI e pela Fundação Telefónica. Madrid 30 de Novembro de 2012;

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Bielsa e o Estilo de Jogo


A exemplo do Marcelo Bielsa e inspirado por tudo o que vivi, até através do olhar (na busca de saber mais para aplicar melhor), sempre que me é possível tento aprofundar os temas o mais que consigo, tentando ao mesmo tempo ser claro e por isso hoje acrescento algo mais ao texto anterior.

Entendo que vivemos numa sociedade do "fast reading", "short videos", "easy information", basicamente tudo rápido, curto e fácil. Mas para transmitirmos e chegarmos a um entendimento sobre os princípios fundamentais que orientam o jogo, que tenho tentado reflectir aqui, é necessário aprofundar, caso contrário nem à pele se chega e o que se pretende é uma incorporação profunda, não um toque superficial.

É precisamente por todos os treinadores pretenderem uma incorporação profunda que os estilos não são coisas que se mudem facilmente (importância da formação?!), porque se instalam no corpo para nos guiarem as decisões, primeiro as conscientes e com o tempo (se o houver) alcançar o inconsciente, pois só assim se chega a um grau ideal coerência dentro de determinado estilo mesmo em situações de extrema dificuldade e pressão.

Por isso, falar em ter estilos diferentes como planos alternativos não fará grande sentido. E não se trata só de uma questão de não haver tempo, trata-se de uma questão de coerência e de não gerar conflito na hora de tomar decisões. Além disto, requerendo o jogo uma comunicação (essencialmente não verbal) constante, este conflito de estilos na cabeça e no corpo dos jogadores iria dificultar a antecipação por parte de todos em relação às acções dos outros. Ora se o tempo e o espaço são fundamentais, estaríamos aqui a atrasar a decisão por haver informação contraditória no seio de uma mesma equipa.

O estilo pretende ligar as unidades num todo, portanto tem que ser coerente e facilitador da antecipação, então há que "repeti-lo" e melhorá-lo. A escolha do estilo é uma valorização de princípios em detrimento de outros, porque se acredita que esses serão melhores para criar oportunidades e consequentemente ganhar.

Algo que se confunde bastante e que é cada vez mais uma fonte de discussão entre treinadores é o facto de haver nuances diferentes num mesmo estilo, ou seja soluções diferentes para "o mesmo problema", a tal adaptação de que tanto se fala, mas sempre mantendo o estilo que nos identifica na continuidade e nos permite melhorar por ser repetido constantemente. Portanto, não se trata de ter um estilo alternativo. Todas as soluções estão orientadas pelo mesmo o que acontece é que muitas dessas nuances acabam por ser promovidas pelas diferentes características dos jogadores e por isso é que vai ser cada vez mais importante ter jogadores do mesmo nível, mas com características diferentes no plantel (não significa ter muitos jogadores), porque a "estratégia" passa por aí, sem mudar dar a determinado jogo, em função de alguma necessidade particular, nuances diferentes, pela mudança de um ou outro jogador no 11 titular (por exemplo).

Tal como os jogadores, todos nós temos diferentes características, além disso cada treinador tem o seu estilo (mais parecidos ou completamente opostos), mas é na conversa, no "confronto", na comparação (sem ser a da superioridade), na competição que nos vamos moldando em função das informações que se trocam que vamos aprendendo, mas a base da ideia essa não acreditamos que mude. É como o estilo de jogo.


a) Conferência de imprensa de Marcelo Bielsa retirada do canal de youtube do Leeds United F.C. - https://www.youtube.com/LeedsUnitedOfficial/

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Identidade, estratégia e imprevisibilidade


Ontem terá sido (daquilo que vi desde a mudança de treinador) o único jogo que o Sporting controlou (sem qualquer dúvida). É facto que o Braga nunca foi capaz de eleger os caminhos de forma a tirar ou criar alguma vantagem, tanto a partir do momento em que recuperava a bola como quando se instalava no meio campo ofensivo. Nunca foi capaz de criar desconforto na estrutura do adversário e muito menos de colocar os jogadores mais avançados em condições de aproveitar qualquer desequilíbrio, porque raramente o criou verdadeiramente.

Tenha sido, por parte de Keizer, algo pensado exclusivamente para este jogo ou em função de quem tem à disposição ou ainda tendo em conta todos os problemas que a equipa tinha em termos de (falta) de dinâmica, quer na criação quer depois na (in)capacidade de impedir que o adversário aproveitasse desequilíbrios. O que é certo é que a estrutura utilizada ontem permitiu ao Sporting:

- esconder as debilidades defensivas dos Médios, compensando com uma linha defensiva mais próxima e mais interventiva na ajuda a esse sector intermédio;
- encontrar dinâmicas (fruto da disposição posicional) que favoreceram as qualidades dos jogadores que o Sporting tinha em campo, o que deu maior fluidez nos corredores laterais, por onde privilegia atacar, mas onde lhes custava conseguir criar espaço e timing para que algum jogador aí recebesse com espaço e em condições para servir Bas Dost na área.
- A “dinâmica de Falso Extremo” (Bruno Fernandes) é algo que o médio faz muito bem;
- Diaby já por dentro dá mais sentido ao jogador e demonstrou que pode ser um jogador que na condução para invadir o espaço nas costas da defesa adversária pode ser importante (no momento de recuperação quando o adversário está subido e instalado no meio campo defensivo do Sporting);
- Os dois pontos anteriores favorecem os laterais Ristovski que prefere ser apoio por trás do que ser ele a invadir a profundidade ao passo que Acuña tem características que “agradecem” o facto de ter espaço livre (em frente) no corredor.

A mudança de estrutura pode até ter sido uma decisão provocada para “combater” só o Braga, mas acabou também por se demonstrar mais respeitadora das qualidades dos jogadores e favorecer as dinâmicas de corredor que me parece que o treinador sempre privilegiou, talvez para aproveitar aquilo em que Bas Dost é bom – desmarcar-se na área para atacar bolas vindas dos corredores laterais e finalizar a um toque com pouco espaço.

Se esta decisão foi um recurso depois da completa inviabilidade do 4-3-3 (principalmente agora com a saída de Nani) ou se foi a procura de focar a equipa numa mudança que pode desviar a atenção do mau momento que a equipa atravessava, ocupando a cabeça dos jogadores com algo desafiante em vez de andarem a pensar na possível eliminação da Liga Europa, isso será difícil de perceber, ainda que possa ter tido esse efeito.

Tendo sido circunstancial, em função do Braga, ou não, o importante quando se definem determinadas nuances estratégicas para criar/evitar problemas contra determinado adversário é que se procurem soluções para impôr aquilo em que somos bons individual e colectivamente. Mas assentar uma estratégia em cima de coisa nenhuma é um erro que pode dar resultado de vez em quando. Ou seja, estratégia que não respeita aquilo que somos e que são os jogadores é um erro. As nuances têm que estar dentro e ser compatíveis com a identidade, com aquilo que temos andado a fazer (promovendo a estabilidade dos princípios e o crescimento da qualidade de jogo). No caso do Sporting é bem diferente, tendo em conta a completa falta de fluidez manifestada na fase pós revolta (da mudança de treinador).


Já o Braga ajuda ainda mais a provar como o “agarrarmo-nos demasiado àquilo que é o plano” pode ter um efeito devastador e bloqueador. A metáfora do “caminho decorado” pode ajudar a perceber o que acontece às equipas que se preparam para algo que depois não acontece.
Eu sou uma pessoa que tem muitas, mas mesmo muitas dificuldades em se orientar (especialmente em território que não é o meu “habitat natural”), sou terrível a descortinar caminhos alternativos nas ruas de qualquer cidade que não conheço. Costumo até dizer que “preciso de 4 linhas e duas balizas para me orientar, sem isso estou perdido”. Isto acontece porque eu não domino referenciais, eu simplesmente memorizo caminhos e qual é o problema disto? É que desta forma não sou capaz de me ajustar ao imprevisível, à possibilidade de estar trânsito em determinado sítio ou de não ter virado na rua que devia e depois não conseguir encontrar um caminho alternativo em função do sítio onde me encontro (ou volto ao ponto de partida e recomeço ou então a situação pode piorar). Isto numa equipa de futebol – traçar o caminho previamente e decorá-lo para o seguir mecanicamente – é terrível, porque o jogo é eminentemente imprevisível e se tu não dominas os referenciais do teu próprio jogo em função dos jogadores que estão em campo e ficas demasiado preso a uma memorização (em função do que antecipas que o adversário vai fazer) que não é capaz de se adaptar ao imprevisto então não há volta a dar, até porque no jogo não podes voltar atrás e começar de novo, uma vez que estás limitado pelo tempo e não podes adiar deixar nada para depois. A nossa identidade tem que ter já a capacidade de arranjar soluções, de perceber o que tem pela frente e arranjar alternativas em conformidade, caso contrário é uma estratégia que não é mais do que uma memorização cristalizada que nos bloqueia caso não a identifiquemos quando nos deparamos verdadeiramente com a realidade que tentamos adivinhar.

O treino é simulação, mas esta simulação tem que incluir autonomia e imprevisibilidade. É urgente incutir nos jogadores/nas equipas essa autonomia e independência para que não se deixem amarrar por um plano, que muitas vezes não se concretiza na sua plenitude. É isto que deve ser a identidade, algo que sustenta o plano e o falhanço do próprio plano e por isso é que nunca a estratégia pode ser incoerente com ela, porque é o que somos na continuidade que nos dá os referenciais que permitem resolver grande parte dos problemas que cada jogo tem, onde metade dos intervenientes treinam juntos todos os dias. A nuance estratégica é a tentativa de antecipar uma ou outra coisa que nos poderá colocar o mais rápido possível nos caminhos que, perante determinado adversário, mais nos caracterizam e nos favorecem.

E com isto se defende a identidade, a estratégia (que vem sempre depois e com um papel menor no longo prazo) e a imprevisibilidade que deve ser respeitada em cada treino.


a) a primeira imagem, com os logos do S.C.P. e do S.C.B., foi retirada do site zerozero.pt

b) as outras duas imagem não requerem menção por parte dos seus autores (que não estavam identificados na fonte)


sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

"Jogar com coragem e carácter!" Pep Guardiola


A coragem (eventualmente também a garra, a vontade de ganhar) deve surgir sempre ligada a princípios que são aquilo que dá sentido a todas a emoções e que nos orientam nos bons e maus momentos. Estes dois conceitos – coragem e carácter – têm que estar sempre relacionadas com a ideia da equipa, uma vez que nos dão uma enorme capacidade de gerir as dúvidas na adversidade. No fundo, é o que nos faz acreditar que aquilo que repetimos, que treinamos sempre, que nos define como equipa diferente das outras é o que tem que se manifestar, especialmente nos momentos onde tudo nos faz questionar se não será melhor abandonarmos o que nos define em termos de valores/princípios.

É aí, no meio da ruidosa e impaciente dúvida, que assalta os seus jogadores, que o treinador procura transpirar e inspirar quem o rodeia desde a ideia e desde a crença, de forma a mudar o sentimento negativo e fazer emergir novamente o entusiasmo pelos princípios que sempre nos caracterizaram e que são no fundo o caminho que liga a equipa e por isso a coloca mais perto de ganhar. A melhor forma de dissipar as dúvidas quando não há tempo é mudando o estado de espírito e para isso muito mais do que passar informação importa passar emoções (ainda que sempre associadas a um conteúdo). Agora, não custa nada reconhecer que não é fácil mudar as más emoções de um, imagine-se de 18. Por isso é que, sem se sentir o jogo que se transmite acima de qualquer coisa, a tarefa torna-se impossível.

Optar por abandonar aquilo que sempre fomos num momento de aperto é como atirar uma moeda ao ar e perceber se isso resolve os nossos problemas. Como é óbvio, fazer isto constantemente (alterar o que somos) é não ter um rumo, é não sermos nada, é sermos (ou não sermos) algo que existe exclusivamente em função dos outros, sem nos termos a nós próprios em conta. Temos que nos assumir mais vezes (treinadores e jogadores - Equipa) como preponderantes na forma como vamos jogar, por uma questão muito simples: nós somos aquilo que se repete em todos os jogos e portanto tem que haver algo que alimente o processo a longo prazo e isso são os princípios da equipa e as características dos jogadores.

Na adversidade busquemos as emoções que nos trazem de volta àquilo que somos. Tenhamos a coragem de sustentarmos o nosso jogar na essência que nos define e a partir daí buscar as nuances que podem solucionar os problemas que os outros nos colocam.


a) o vídeo aqui publicado é um extrato do documentário “All or Nothing” lançado pelo Manchester City a 17 de Julho de 2018

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

As necessidades fundamentais do desenvolvimento



Melhorarmo-nos e (no caso de Gente cuja paixão é formar) melhorar os outros deve ser uma preocupação diária. Importa perceber as devidas diferenças entre o ensinar e o criar condições para que se aprenda e ainda que não fale disto ao longo das seguintes linhas importa ter isso presente, para se perceber que o ideal é que a vontade de melhorar parta de cada um ainda que hajam variadíssimas formas de “espicaçar” essa vontade.
 
Ora, para que se dê este "melhorar" constante, há algumas condições fundamentais:

1. "Amar o que fazemos!" (que não é o mesmo que "fazer (só) aquilo que gostamos"). Entender o conceito de “amar o que fazemos” como catalisador da aprendizagem é fácil. O que acontece é que, erradamente, damos por muita gente que quer retirar do processo tudo aquilo que a criança não gosta ou a faz sentir-se frustrada - “Medalhas para todos!”, “Não gostas de defender? Ok, tu só atacas!”, “Não se fala em perder ou ganhar no treino, porque isso faz ‘sofrer’ quem perde!”… é nefasto retirar do caminho da criança tudo aquilo que a incomoda, mas que faz parte da vida eu diria até que algumas coisas (na devida proporção) devem ser promovidas para que o desconforto surja e assim haja a possibilidade de ser ultrapassado, como uma vacina.

2. "Ter a noção de que não somos bons o suficiente!" - somos sempre um processo inacabado, por isso “aprender” é algo que nos deve acompanhar toda a vida. Esta noção temos que a ter dentro de nós, mas o contexto (quem nos rodeia e contra quem "competimos") tem que nos fazer sentir isso mesmo. Se o contexto for demasiado fácil e não nos causar qualquer desconforto, então a necessidade de melhorar nunca será tão grande. Não devemos depender exclusivamente da nossa consciência de que temos muito que melhorar, é necessário que o dia-a-dia nos faça sentir isso, precisamos de nos colocar em situações que provoquem em nós o aparecimento da mentalidade certa e que mantenham em nós os hábitos que nos aproximam da evolução.

3. "Saber que melhorar é algo difícil!" O desafio, o desconforto e o obstáculo como parte importante da aprendizagem. Isto está em tudo relacionado com o ponto anterior. Não se dar às facilidades. Ver na dificuldade um desafio e não um impedimento para alcançar o que queremos. Perceber que a dificuldade me dá um “empurrãozinho” até encontrar as melhores soluções, enquanto que a facilidade me permite resolver o problema de qualquer maneira – bem ou mal o resultado será sempre positivo, no imediato. Ter este gosto pela dificuldade é algo essencial para melhorar. Ter gosto por aquilo que nos custa alcançar, retirar prazer desse processo sentindo que por esse caminho há mais hipóteses de nos tornarmos melhores. Formar neste ambiente é sempre mais saudável do que mascarar tudo com injecções de confiança sem sentido do que é a realidade.

4. "Máxima <<ilusión>>!" Esta palavra que no vídeo aparece traduzida como "paixão" é mais do que isso, é um misto de muita coisa. É um conceito que envolve paixão, entusiasmo, esperança, sonho, vontade, crença... é tudo aquilo que nos leva à transcendência, é aquilo que perante todas as adversidades faz com que nos superemos, é o que, perante um problema difícil e que nos demonstra mais uma vez que "não somos bons o suficiente", nos faz procurar as soluções para a sua resolução.

Mas deixo-vos o vídeo onde fala quem sabe melhor.


a) Intervenção de Toni Nadal no Congresso "Lo Que De Verdad Importa" organizado em conjunto pela Fundação LQDVI e pela Fundação Telefónica. Madrid 30 de Novembro de 2012;
b) Conferencia de Toni Nadal: “Todo se puede entrenar”. Evento inserido nas celebrações do 110º aniversário do “Diario de León”. León, 2016;
c) Conferência de Toni Nadal, antigo treinador de Rafael Nadal: “Innovación y motivación al cambio”. Evento que teve lugar durante o “Oracle Digital Day 2018”;

sábado, 2 de fevereiro de 2019

Rui Faria - Periodização Táctica, Valores e a (eventual) sombra de Mourinho (PARTE III)


"Hoje em dia há uma vontade muito grande em mostrar no Instagram ou no Twitter vídeos de jogadores a trabalhar em casa com um Personal Trainer. Isto é a pior coisa que pode acontecer em Alta Competição. Tu tens um programa no clube, gente que gere a tua saúde e de repente vais para casa e dizes a alguém que queres ficar mais forte. OK, ele deixa-te mais forte, mas não tem em consideração o que está a ser feito no clube ou a fadiga do jogador e isso é mau para ti. É uma doença moderna."


Quem mais perde são os jogadores, os treinadores e o clube. O treinador tem todo o interesse em que o jogador melhore e mais ainda em que o jogador não se lesione, portanto parece-me óbvio que a opinião do Rui Faria devem ser levada muito a sério, não só por ter estado muitos anos a Top (com 50/60/70 jogos por época), mas essencialmente por serem treinadores e terem visto os malefícios que isso tem no corpo e no desempenho dos jogadores.

A prioridade terá sempre que ser o treino que tem em vista recuperar os jogadores para que possam estar no pico de forma a cada jogo (de semana a semana ou de 3 em 3 dias). Isto em simultâneo (limitados que estamos pela primeira prioridade) com um desenvolvimento/manutenção das dinâmicas e do crescimento do jogador dentro do jogar da equipa. Ora, se o treinador para além disto tiver que contemplar a fadiga do treino no ginásio, o tipo de contrações estimuladas no treino com o personal trainer e as repercussões que isso teve em termos fisiológicos e que, obviamente, condicionam o que se pode fazer, vamos facilmente perceber que mais limitada estará a disponibilidade dos jogadores para a aquisição das prioridades referidas anteriormente, limitando também a criação de uma forma de jogar que se pretende fluída.

O jogador em “modo máquina” é o paradigma em que vivemos hoje e não temos grande alternativa em relação a esta visão. Muitas vezes, pelo pouco poder que o treinador tem no clube e também porque como referimos na Parte I e II existem crenças que dão bem estar ao jogador que não podem nem devem ser ignoradas, devemos interferir naquilo que realmente consideramos que irá ser determinante e por isso resta-nos, naquilo que poderá não ser essencial, perceber que esse treino “extra” é um dado adquirido e tentar dar alternativas dentro do clube ao jogador ou então estar atento ao que é feito e procurar reduzir o eventual impacto negativo que isso possa ter no seu corpo e no jogo da equipa.



a) Entrevista de Rui Faria ao "The Times" - 29/Set/2018.
    Texto de Henry Winter, fotografia de Ben Stevens.


- Fim -

Rui Faria - Periodização Táctica, Valores e a (eventual) sombra de Mourinho (PARTE II)

 
“Eu joguei a um nível baixo, mas conseguia ver (soluções). 'Treinámos 3 vezes por semana, então porque é que andamos a perder tanto tempo a correr à volta do campo? Devíamos estar a treinar especificamente para o jogo.’” Rui Faria

“Quando viemos do Porto para o Chelsea (2004), viemos com uma filosofia. José (Mourinho) era o novo homem no futebol que quebrou todas as regras, com épocas fantásticas no Porto, onde ganhou tudo (...)” Rui Faria


1. Quando começas a pensar em Futebol e se não haverá uma forma de melhorar o jogo, o jogador e evitando lesões ao mesmo tempo... Sim isto são preocupações da Periodização Táctica. Esta metodologia entende que para que a "Táctica/Organização/Princípios de jogo" se manifeste no seu auge a cada Jornada é necessário que todas as dimensões do jogo surjam coordenadas (não se trata de me deslocar sem um sentido, desloco-me porque sinto, "entendo" e antecipo) e é esta coordenação que se treina. Porque decidir mal prejudica o jogo, decidir só em função do que eu tenho na cabeça, sem contemplar o resto (colegas/adversários/bola/espaço) prejudica o jogo da equipa, jogar com um corpo cansado, sem agilidade e sem fluidez para um jogo que se quer imprevisível (individual e colectivamente) também não serve, pois prejudica a equipa e o próprio jogador, jogar tendo conflitos com o treinador ou com companheiros prejudica o jogo, ter medo de ter a bola atrás por medo de errar também prejudica o jogo, falta de fineza na hora de tocar a bola, como é óbvio, também prejudica a forma de jogar. O que a Periodização Táctica contempla é tudo isto em simultâneo com a ideia como orientadora daquilo que se faz no treino (Recuperando/Adquirindo).

 
2. Convencer os Jogadores. Com todos os preconceitos que levamos dentro esta é das tarefas mais difíceis, porque cada pessoa é um conjunto de hábitos e de ideias pré-concebidas seja com base em estudos, livros ou informações recolhidas com base nas suas experiências. Acreditamos por vezes que coisas acessórias foram as que nos catapultaram para o nível alto que alcançamos, e ninguém pode negar o poder da crença. "A fé move montanhas" e é verdade, seja ela religiosa ou filosófica ou empírica. Por isso criar hábitos "de raiz" é mais fácil do que desconstruí-los para criar novos conceitos.

<<O Lampard estava habituado a correr à volta do campo durante o treino, até que o Rui Faria o abordar: "O pianista que vai dar um concerto não corre à volta do piano nem faz flexões apoiado nos seus dedos de forma a se preparar.">>
3. "Outros tempos", outras posturas perante quem lidera. Não é problema nenhum que as pessoas demonstrem interesse em saber mais sobre o jogo ou sobre a forma como se treina (bem pelo contrário), o problema hoje em dia é que as pessoas não querem saber do porquê querem é dizer que não é assim e é melhor de outra forma, cada pessoa quer interferir naquilo que se faz. "Questionar" hoje em dia é isto. Por isso o desafio não é explicar às pessoas... o Desafio é levar as pessoas a QUEREREM ENTENDER. Este é o grande reto que os treinadores têm hoje em dia.

"Há uma grande mudança (no Futebol). As pessoas agora questionam quem lidera. Parece que toda a gente sabe tudo, então quando pedes para se fazer determinada coisa, algumas vezes duvidam do que dizes. Antes havia carácteres apaixonado por futebol, com uma enorme vontade de aprender e de fazer bem, jogadores como Drogba, John Terry, Frank Lampard, Ricardo Carvalho, que veio connosco do Porto (...)" Rui Faria



a) Entrevista de Rui Faria ao "The Times" - 29/Set/2018.
    Texto de Henry Winter, fotografia de Ben Stevens.

Rui Faria - Periodização Táctica, Valores e a (eventual) sombra de Mourinho (PARTE I)


 1. Periodização táctica e a desconstrução de ideias estereotipadas, de dogmas. A aceitação duma outra forma de fazer e o entendimento do que se faz:
<<No Inter, eles diziam "na última época víamos o preparador físico em cima da bicicleta e punha os jogadores a correr às voltas nesta pista, porque não fazes o mesmo?" e eu respondi, pela mesma razão que os atletas não jogam futebol para melhorar a sua técnica de corrida", eles começaram a rir-se. Nunca ninguém tinha parado para se questionar.>> Rui Faria

Tanto no jogo como no treino importa pensar no porquê de se fazer o que se faz. Questionarmos o porquê de se fazerem as coisas (questionar porque se quer entender e não questionar para condenar). Depois há a capacidade de convencermos as pessoas na estrutura e os jogadores, isso é outra questão e talvez seja o mais difícil, mas antes disso estará a importância de educar as pessoas para que percebam o porquê. Se é difícil mudar quando são adultos, então fará sentido que na formação se habituem as crianças a pensar no porquê de se fazerem as coisas. Para dar outro exemplo, o conceito de "Abrir o campo", estará isto de tal forma enraizado que já se tornou numa obrigação ou é verdadeiramente entendido o porquê?

2. O respeito pelas crenças, mas sem deixar de fazer o jogador pensar e questionar aquilo que sempre fez.

<<Em Madrid a propósito do trabalho intensivo do C.Ronaldo no ginásio. "Eu disse-lhe 'Com isto vais perder mobilidade e agilidade, e um rapaz como tu vive da velocidade com a bola, tu tens muita habilidade para o drible.' Mas nunca lhe disse para parar, só lhes abria as mentes para uma abordagem diferente.">> Rui Faria

Proibir de fazer quando alguém acredita tanto que o trabalho no ginásio foi o que o tornou no melhor jogador do Mundo, ou noutros casos, impedir alguém de fazer aquilo que durante toda a vida consideraram ser vital para o seu crescimento (como por exemplo rezar, ou um amuleto da sorte, ou umas corridas à volta do campo) seria mais nefasto do que benéfico. Mas ainda assim colocar a nossa semente e fazê-los pensar não custa nada e se do outro lado estiver alguém maduro irá perceber que são formas diferentes e que com certeza os treinadores só querem ajudar.


3. A Mentalidade que faz dum "grande jogador" um "ainda melhor jogador".

<<Eu trabalhei com vários bons profissionais, mas o C.Ronaldo é talvez o melhor no seu desejo de ser melhor a cada dia. Podíamos chegar ao campo de treinos às 04:00 (madrugada) após um voo e ele queria água fria, água quente e pedia a alguém para lhe dar uma massagem. Podia acabar um treino ficar mais uma hora a marcar livres ou a fazer uma acção como vir para dentro e rematar. Enquanto miúdo, com 12 anos, deixar a Madeira para ir para o Sporting, porque tinha um sonho, uma paixão... e ele construiu a sua carreira baseada na paixão e no trabalho árduo. Respeito-o muito.>> Rui Faria

Independentemente de ser determinante a massagem, os livres extra ou não, o que importa perceber é a intenção por detrás disso. Que mentalidade tem alguém que prescinde de tempo com a sua família, que prescinde de tempo de diversão com os seus amigos, para ser melhor a cada dia? Não é falta de amor pela família com certeza, mas é uma paixão muito grande e uma vontade enorme de ser melhor naquilo a que se entregou de alma e coração - ser jogador de Futebol.


a) Entrevista de Rui Faria ao "The Times" - 29/Set/2018.
    Texto de Henry Winter, fotografia de Ben Stevens.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

Um por todos e todos pela Bola!


A essência do Futebol Total nasce da vontade de determinar os caminhos da bola pelos nossos próprios pés, ou, quando não a temos, determiná-los limitando aqueles que a têm. É total porque enquanto EQUIPA não há “os que servem só para defender” e “os outros que são só para atacar”, e é por isso mesmo que imbuídos desta ideia vamos caminhando juntos no campo, para estarmos sempre disponíveis para interferir nas trajectórias a dar à bola tendo-a ou não a tendo.

Antes do jogo de futebol aquilo que nos é apresentado no seio da família é uma bola. O jogo/a paixão/a brincadeira para nós começa por ser uma bola, e andamos alguns anos em que a nossa relação (remota) com o futebol é essa, exclusivamente. Só mais tarde passamos a incluir, a permitir que algumas pessoas em quem nós confiamos muito partilhem o prazer da bola connosco, com a condição de que a devolvam rápido. É um choque o primeiro momento em que nos roubam aquilo que sempre foi nosso, é um choque quando descobrimos que afinal havia mais para além da bola. Não raras vezes a reação “à perda” é chorada, revoltada, amuada, ou uma tentativa, mas proactiva e alegre de a recuperar – tudo soluções com o mesmo fim ter a bola de novo para “mim”, porque sem ela não há jogo, porque ela é tudo o que concebemos do jogo.

Portanto podemos dizer que é da bola que nasce a ideia, é da bola que nascem todos os princípios. Podemos não ter aquilo a que chamamos recordações, mas a memória do nosso corpo vai entranhando, vai (progressivamente) somatizando uma cultura do que é o jogo para nós desde que nascemos (através das experiências com aquilo que nos é dado “à nascença”)... inegavelmente a bola está no princípio de tudo!

Não é de admirar que muitos miúdos percam o interesse quando percebem que o jogo que inicialmente lhes apresentaram – a bola, esse objecto que nos fazia sentir os donos do mundo – é afinal bem diferente daquele que mais tarde os vão colocar a jogar – com a ajuda de 10 colegas tentar colocar a bola (partilhando-a muitas vezes) dentro de um retângulo, e de preferência mais vezes do que outros 11 que nos procuram dificultar essa tarefa, porque querem o mesmo. Ou seja há muito mais do que aquilo que nos deram a conhecer, talvez por isso muitos se dedicam ao freestyle tanta é vontade de constantemente terem aquilo que lhes disseram que era deles e que era a única coisa que precisavam para ser felizes. Para os que se apaixonam pelo jogo (e por tudo o que ele é) muitas outras coisas interferem no longo processo até chegarem a uma equipa sénior, mas relembramos: a bola está na origem de tudo.

Para os que não se esquecem do ponto de partida que lhes permitiu mais tarde conhecer o jogo de futebol há muita esperança, é que o jogo também ele pode nascer da bola, valorizando-a numa “obsessão” por tê-la de forma a determinar aquilo que lhe acontece, evitando os constrangimentos colocado pelo adversário. E é aqui que nasce uma necessidade vital para aqueles para quem o futebol só faz sentido com a bola: a EQUIPA. A descoberta de que se não dermos a bola “aos nossos” estaremos mais perto de ficar sem ela para sempre é o que nos abre para a partilha e para o Futebol Total, onde as paixões de todos nasceram do mesmo e por isso todos temos o privilégio de atacar e o privilégio de defender.

É nesta necessidade que a EQUIPA ganha uma enorme importância, mas fiquemos tranquilos, porque a valorização da equipa também valoriza o individual. E também podemos ficar descansados, porque valorizar a bola não significa que vamos ter jogadores que não sabem defender, antes pelo contrário.

Esta valorização quase obsessiva, mas que no fundo é "só" apaixonante, vai trazer para o treino e para o jogo uma necessidade de defender muito bem para recuperarmos aquilo que mais queremos ter para dominar o jogo. Claro que defender para ganhar a bola não é o mesmo que defender só para proteger a baliza e por isso, neste carinho pela bola, surgem jogadores que defendem de formas diferentes (com referências diferentes) - há então uma especificidade que será importante para o futuro. O "habitat natural" no futuro poderá ser diferente em função do jogo que se foi jogando de pequeno. Por isso é também importante jogar (os treinos onde há dificuldade são essenciais – equipas equilibradas) contra equipas que nos façam passar por problemas na imposição daquilo que nós queremos e que nos obriguem muitas vezes (por não nos darem outra hipótese) a ter como prioridade a proteção da baliza (como maior preocupação, não única entenda-se, em determinados períodos do jogo).

Tendo isto em conta (a bola como origem do jogo) que melhor forma de jogar que não sendo "todos a atacar e todos a defender"?

Precisamos de todos para, enquanto mantemos a segurança da bola, procurarmos progredir e chegar perto da baliza com gente para recuperar a bola logo que possível e para haver várias soluções para finalizar.

Precisamos de todos para, enquanto protegemos a profundidade nas costas da última linha, mantermos a bola sob pressão para a (re-)conquistar e também necessitamos de quem proteja (numa zona intermédia) aqueles que com agressividade provocam o erro com essa pressão na bola. Assim como com bola precisamos daqueles que jogam por dentro, dos que criam duvida no adversário nas várias dimensões/amplitudes do campo, etc. etc. etc.

Do nascermos sozinhos com a bola à EQUIPA que dá sentido ao jogo com bola, vai um longo caminho que não se quer com grandes pressas, nem o jogo nem o caminho.



a) foto retirada da página oficial do facebook de Johan Cruyff